A clínica de abordagem fenomenológica tem suas raízes nas filosofias de Edmund Husserl, Martin Heidegger, Merleau-Ponty, entre outras. Embora não seja necessário conhecê-las para fazer terapia, é interessante saber que nascem do esforço em compreender a experiência humana com radical seriedade e crítica, sem reduzi-la a explicações pré-estabelecidas da tradição filosófica. No entanto, apenas algumas pinceladas do diálogo entre Fenomenologia e Psicologia ganham contorno aqui e grande parte de suas implicações não será tratada neste contexto, dada sua extensão e o propósito introdutório da escrita.
Ao se buscar a psicoterapia, pelas mais diversas razões, algumas inseguranças podem estar presentes: a estranheza de falar de si para alguém fora do contexto cotidiano, as dúvidas sobre a escolha da abordagem e a eficácia, o medo de se expor e tantas outras lacunas que habitam os primeiros movimentos dessa procura.
Nesse contexto, as questões relativas à ética e ao rigor são elementos primordiais, pois é, também, a partir delas que se abrem as possibilidades de vínculo, confiança e responsabilidade. Torna-se evidente a necessidade dessa postura quando, no horizonte do encontro clínico, está em jogo tudo aquilo que, para nós, é íntimo e valioso, conduz a vida, as escolhas e se recolhe quando visto pelo outro.
Os Códigos de Ética das profissões regulamentadas são instrumentos normativos e orientadores fundamentais, pois estabelecem princípios e normas que direcionam a conduta profissional para a construção de uma sociedade mais justa e responsável. No Código de Ética da(o) Psicóloga(o), três Princípios Fundamentais tratam, entre outros aspectos, do compromisso ético diante das pessoas e comunidades e do desenvolvimento da Psicologia enquanto campo científico. São eles:
I. O psicólogo baseará seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
III. O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural.
IV. O psicólogo atuará com responsabilidade, por meio do contínuo aprimoramento profissional, contribuindo para o desenvolvimento da Psicologia como campo científico de conhecimento e de prática.
A Clínica de abordagem Fenomenológica está profundamente implicada com os princípios éticos. Entre os fundamentos filosóficos que a compõe, a postura fenomenológica parece evidenciar, justamente, o fazer da psicoterapia como desmantelamento do modo de reificação de pessoas e grupos. Além disso, coloca em xeque uma ciência que se pretende imparcial e apartada da vida.
No encontro clínico, a postura terapêutica apoiada no método fenomenológico – proposto por Husserl – compreende como gesto primordial a suspensão dos juízos, sejam provenientes de posicionamentos pessoais do profissional ou de concepções teóricas que tentam explicar a realidade e a natureza das coisas, ou seja, o esvaziamento da consciência e uma abertura à experiência propriamente dita, sem nada que a interponha. Com isso, é na inteireza do encontro que a experiência se dá, na ausência de subterfúgios ou pressupostos, como lugarpara tudo aquilo que dói, alegra, ameaça ou se mescla, apareça.
Nesse sentido, é no acompanhar o que se mostra, sem erguer a pretensão de torná-lo objeto de especulação, que o terapeuta pode descrever o que aparece, em seu modo de aparição. No entanto, a aparição de algo, como algo, nada tem a ver com a imparcialidade perseguida pela tradução moderna, para a qual tudo depreenderia da cisão entre sujeito e objeto, tampouco com um subjetivismo que reduziria tudo à consciência individual. Acompanhar a experiência e a descrevê-la em sua constituição, remete justamente ao campo de sentido onde algo pode aparecer, tal como aparece, para uma dada pessoa. Desta forma, é o modo de ser de algo, ou seja, a essência que se revela no encontro clínico.
No entanto, essência, para a fenomenologia, não se refere à natureza de algo, àquilo que permaneceria independente e oculto pelas aparências e mudanças, tal como se julga, por exemplo, o Amor enquanto algo em si mesmo, uma espécie de propriedade que restaria após a subtração de tudo que seja contingente no Amor. Na mais absoluta contramão disto, reside a essência para a fenomenologia – especialmente em Heidegger, pois a condição de possibilidade de algo, enquanto algo, jamais pode estar fora do campo imediato da experiência de algo. Assim, as essências se dão, tal qual se dão, quando as experiencias se realizam, ou seja, a essência só se dá no modo como algo aparece concretamente, na experiência vivida, situada no tempo e no mundo.
Nesse sentido, o terapeuta pode acompanhar e descrever o que acontece quando, junto ao cliente, a experiência, por exemplo da depressão, se dá no acontecimento do encontro clínico. A experiência não acontece fora do tempo, ou seja, aquilo que se experimenta na depressão somente pode aparecer inscrita no horizonte de significação de um dado tempo e de um modo de ser, pois tudo o que se vive se dá no entrelaçamento da história, do corpo, do mundo e da temporalidade.
Na medida em que os pressupostos são suspensos e os fenômenos aparecem tal como se dão na experiência, não pode restar dúvidas no modo de ser daquilo que se mostra, tal qual se mostra, ou seja, há na postura clínica o necessário rigor metodológico da fenomenologia. O modo que cada um experimenta a tristeza, por exemplo, é sempre um modo que a experiência da tristeza se dá, a cada vez, naquilo que concerne à tristeza como possível e, desta forma, não se trata de pensar sobre a tristeza, seja conceitual ou particularmente, mas de reconhecer que até mesmo a possibilidade de refletir ou de afirmar uma individualidade já está ancorada na existência, no mundo e no tempo.
Claro que muitos outros elementos estão presentes na psicoterapia e repercutem nas questões relativas à ética e ao rigor: a postura terapêutica como abertura à alteridades e à singularidade do vivido, a condição humana de indeterminação e finitude e tantas mais que compõem a base filosófica desse peculiar modo de reunião. No momento, as breves colocações parecem elucidar algumas considerações, sem pretensão de esgotá-las. De qualquer maneira, a plenitude do processo terapêutico pode acontecer na vivência da relação, a cada encontro clínico.