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Corpo como Lugar de Sentido e Vulnerabilidade

Corpo como lugar de sentido e vulnerabilidade - Autorretrato, Schiele

Somos, primordialmente, nosso corpo: gestos, vozes e modos de ser que se transformam conforme o mundo. Frágeis, circulamos por aí, sob o olhar de muitos, em direção a outros, com a crença de que permaneceremos os mesmos.

Nesse sentido, o corpo não é algo que possuímos como mero recipiente da consciência, mas condição constitutiva da existência, lugar de nossa vulnerabilidade e também de nossa potência de encontro, onde o mundo nos é dado e onde nos tornamos quem somos. 

Para a clínica de abordagem fenomenológica, a existência nunca se dá de forma isolada, pois somos sempre em relação, situados num horizonte de significação. Assim, a experiência do outro, particularmente seu olhar, nos expõe ao seu modo de nos qualificar.

Ser visto pelo outro, tal como desenvolvido por Jean-Paul Sartre na Parte III de O Ser e o Nada (1997), revela uma dimensão radical da alteridade: o outro é aquele que nos constitui enquanto objeto. No exemplo da fechadura, Sartre descreve um sujeito que espreita pela abertura da porta e, ao perceber que está sendo observado, se dá conta de si como objeto de um olhar alheio, que o apreende como jamais poderá apreender a si mesmo: como coisa no mundo.

Por vezes, um único olhar afeta profundamente nossa experiência do corpo, levando-o a lugares sombrios de sofrimento e tormenta. Mas não é um olhar despretensioso e fugaz, pois carrega consigo um mundo de interjeições e imperativos.

A vergonha que emerge não se refere apenas ao conteúdo da ação, no exemplo da fechadura, mas à experiência de ser fixado, capturado pelo olhar alheio, pois com ele reconheço “que sou  como o outro me vê” (1997,  p.  290). Assim, a vergonha “é apreensão vergonhosa de algo, e este algo sou eu” (1997, p. 289). 

Longe de ser um fenômeno meramente óptico, é carregado de historicidade, normas e valores. A percepção do corpo, nesse contexto, sofre uma ruptura: o corpo vivido (Leib) transforma-se em corpo observado (Körper), corpo-coisa: sou, agora, aquele que é visto como algo — um corpo sob avaliação, medida e julgamento, lugar de mal-estar, vergonha e de inadequação.

Egon Schiele (1980 -1918), expoente pintor austríaco ligado ao movimento expressionista, parece excelente para evidenciar  de maneira visceral essa condição. Em inúmeras obras suas, particularmente nos autorretratos e outras representações, o corpo, distorcido e fragmentado, emerge como palco de tensões. Os traços angulosos, os olhares desviados, os gestos contorcidos revelam uma corporeidade que se percebe vulnerável, marcada pela alteridade. Schiele convoca o observador a participar do drama do corpo olhado, do corpo ferido pela normatividade estética e moral.

No contexto clínico, a psicoterapia fenomenológica oferece um espaço ético de suspensão dessas injunções normativas. Em lugar de capturar o sujeito em categorias diagnósticas ou explicações causais, propõe a construção de um espaço de escuta e presença, onde o corpo pode recuperar sua dimensão expressiva e onde a existência pode ser narrada em sua singularidade. A clínica torna-se, então, lugar de plena corporeidade vivida, de desconstrução das experiências alienantes de objetificação.

Portanto, a psicoterapia fenomenológica não se propõe a “curar” o corpo do sofrimento, mas a restituí-lo como território legítimo de sentido, abrindo espaço para que o sujeito possa, gradualmente, habitar-se de outros modos. A psicoterapia pode ser espaço de plenitude do corpo vivido quando a presença afirma a vulnerabilidade como condição de todos e os padrões impostos, contingências do nosso tempo.

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